Cultura

“A Semana de Arte Moderna acordou o Brasil e ousou o diferente”

Passados 100 anos, a Semana de Arte Moderna de 1922 é lembrada e celebrada. Seus legados, rediscutidos.  É, ainda hoje, objeto de estudo para artistas e pesquisadores. Para falar sobre essa importante experiência artística o Blog da Condessa conversou com o professor titular da Universidade Federal de Mato Grosso, Fernando Tadeu de Miranda Borges. A tela “Abaporu”, de Tarsila do Amaral, percorre a eletrizante entrevista, bem como a efervescência econômica, política e social, dos anos 20 do século XX, em nosso país. A homenagem ao intelectual Nicolau Sevcenko, que foi professor do entrevistado, faz jus ao grande pensador, e a simpatia pelo economista Celso Furtado fica nítida. De recado, a necessidade de um novo grito de liberdade das artes, a importância da criação do Museu de Arte Moderna de Mato Grosso, e o estabelecimento de uma política efetiva de curto, médio e longo prazo para a cultura.

Blog da Condessa – Como o senhor explicaria a Semana de Arte Moderna para alguém que nunca ouviu falar dela?

Fernando Tadeu de Miranda Borges – A semana de arte moderna, que ocorreu em São Paulo, de 13 a 17 de fevereiro de 1922, foi um movimento que pretendeu libertar o país depois de 100 anos de independência política, da dependência econômica e cultural. Um novo Grito do Ipiranga no centenário da Independência do Brasil, e que neste bicentenário da Independência do Brasil poderia voltar a acontecer, só que desta vez com participação popular. No caso de ser feita em um teatro, que fosse liberada a entrada.

A semana de arte moderna resulta de algo que vinha sendo gestado, e em 1922, não mudou de imediato o cenário, pelo contrário, no Rio de Janeiro, por exemplo, a transformação deu-se de acordo com as suas características e dentro de uma outra órbita. Cabe, porém, observar, que em São Paulo, nem todas as pessoas puderam participar do evento no Teatro Municipal, pois o ingresso era pago, contudo, o que a semana quis mostrar mesmo era a transformação de São Paulo Província em São Paulo Metrópole. Embora o grupo que encabeçou o movimento estivesse à frente do tempo em muitos aspectos, carregou consigo os limites da época, São Paulo “desvairou”, mas nem tanto, além disso ainda hoje não somos modernos na amplitude do termo, continuamos dependentes e não somos donos do nosso próprio destino, segundo pontuou Celso Furtado, em um dado contexto, “desenvolvimento é ser dono do seu próprio destino”.

Nicolau Sevcenko, meu saudoso professor de História da Cultura, no doutorado em História Social da USP, publicou um livro interessante sobre os anos 20, em São Paulo, “Orfeu extático na metrópole”, pela Companhia das Letras, que recomendo a leitura. Lindas e instigantes análises foram realizadas!

Em 1968, com a derrubada da Catedral Metropolitana de Cuiabá, descobri que ser moderno é encontrar formas de conservar o patrimônio material e imaterial de uma cultura, ser moderno não basta dizer, “sou moderno”, mas é muito mais que isso, é um processo de amadurecimento, um processo de respeito pelo outro e pela natureza, um processo de cuidado especial com o planeta, por isso demorei a enxergar que sempre fora de certa forma moderno, uma vez que desde jovem defendi e lutei pela vida, pelo patrimônio e pela natureza ao meu modo. Mas ser moderno também cansa porque exige acompanhamento rápido de tudo, dessa forma, procuro inventar minha maneira moderna de conviver comigo mesmo e com os outros. Sempre penso que seja no transitório das ideias que sobrevive o presente do passado. Tenho medo no mundo moderno do provisório, do descartável, da rapidez e do esquecimento, mas ainda assim me considero um moderno aprendiz. Uma política para os arquivos públicos, os museus, as obras de arte, o artesanato, as festas e danças tradicionais precisa ser construída. Ser um democrata moderno pede compromisso e responsabilidade social com a cultura, a educação e a saúde.

Blog da Condessa- A Semana de Arte Moderna de 22 foi um ponto de partida para o modernismo. Hoje temos uma arte plural e diversa?

Fernando Tadeu – A semana de arte moderna foi importante porque anunciou ao país a cidade de São Paulo como uma nova metrópole cultural, econômica e política, e que foi se consolidando aos poucos no território nacional, com o desenvolvimento da indústria. O centro dinâmico da economia brasileira, como disse o economista Celso Furtado, intelectual brilhante, que pensou o Brasil, e que conheci na Academia Brasileira de Letras num evento da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro, se deslocou de uma economia agroexportadora para uma economia industrial. Tudo ocorreu através do “processo de substituição de importações”, estudado pela economista Maria da Conceição Tavares, que foi instalado no país, nos anos 30, e nesse período surgiu em grande número os trabalhadores industriais, retratados na tela, “Operários”, de Tarsila do Amaral, de 1933. Tarsila do Amaral registra de forma expressiva esse momento, é uma das artistas brasileiras que encanta e leva a pensar nas ambiguidades da modernização.

A tela “Abaporu”, uma das mais valiosas da arte brasileira, pintada por Tarsila do Amaral, em 1928, que encontra-se no Museu de Arte Latina Americana de Buenos Aires (MALBA), representa essa fase do modernismo brasileiro. É questionado o fato dessa obra não estar mais em nosso país. Embora também pensasse de forma parecida, quando visitei a obra no MALBA, constatei que a arte brasileira dera um salto e estava internacionalizada e valorizada. Tarsila do Amaral não estava no país, em 1922, mas logo que chegou de Paris se integrou ao grupo, e de forma ativa participou do movimento. Casada com Oswald de Andrade, o quadro “Abaporu” foi pintado para ele, e integrou a fase antropofágica, que propunha conhecer todas as culturas, mantendo a originalidade da cultura brasileira. Seria interessante, portanto, que todas as obras desse período fossem reunidas numa grande exposição para que as pessoas conhecessem o grito de independência dado pelos artistas brasileiros há cem anos.

No país, hoje, diria que temos uma arte plural e diversa, e que os artistas tem feito a sua parte, pois em cada região temos grandes nomes nas artes plásticas, na literatura, na poesia, no teatro, no cinema, na escultura, contudo o apoio de uma maneira geral está bastante aquém, faz-se necessário uma política para a área de curto, médio e longo prazo. Os museus e o cinema nacional precisam de mais apoios, os estudantes precisam estar envolvidos no processo, as escolas públicas precisam de mais atenção, os filhos dos mais abastados devem estudar nos colégios públicos para aprenderem a conhecer as diferenças sociais, e para poderem ver o país de dentro e não somente através dos livros. Uma nova semana de arte moderna deveria acontecer junto com a modernização da educação em todos os níveis, pois a universidade brasileira também precisa de cuidados especiais e de reparos, o acesso ainda é excludente. Gostei muito do modelo de acesso da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), um vestibular realmente inclusivo, algo que não imaginava em termos de Brasil, e com isso, deduzo que o livro, “O Rio de todos os Brasis”, do colega economista Carlos Lessa, foi importante na luta do Rio de Janeiro para a recuperação de sua “autoestima”. Na UERJ, portanto, as pessoas pobres e idosas parecem estar sendo realmente incluídas (a UERJ tem feito isso de forma inteligente, espero que continue, porque em nosso país estamos sempre recomeçando, e adiando o presente para o futuro).

Blog da Condessa – Que leitura o senhor faz hoje do legado deste evento que foi tão importante no início do século passado?

Fernando Tadeu – A semana de arte moderna acordou o Brasil, mesmo que o evento tenha sido restrito, ousou o diferente, mostrou que alguma coisa nova estava em andamento e que o movimento antropofágico buscava uma arte livre. Naquele momento em que devorávamos a cultura dos outros povos, entendíamos que era para fazer nascer a nossa cultura. Que venha o terceiro grito, e desta vez com todos os segmentos sociais deste nosso “braseiro”, de cores vivas e pulsantes.

 Blog da Condessa – O senhor acha que o Brasil comportaria uma Semana de Arte Moderna hoje?

Fernando Tadeu – O país comportaria muitas semanas de arte moderna, pois são muitas as regiões e com muito a dizer para todo o território nacional. A cultura nacional vive no “abaporu”, de Tarsila do Amaral, que deu seu grito de liberdade para toda América Latina. Vale a pena uma visita ao Museu de Arte e Cultura Latina Americana de Buenos Aires (MALBA), além de estimular o crescimento do turismo na América do Sul. A arte brasileira está mais viva do que nunca, recentemente fizemos uma exposição do Museu de Arte e de Cultura Popular da UFMT, de Sebastião Silva, intitulada “Fogo Cerrado”, um trabalho para ser apreciado pelo país e pelo exterior.

Blog da Condessa-  De alguma forma essa renovação intelectual passou por expressões regionais literatura e ‘respingou’ em Mato Grosso/Cuiabá?

Fernando Tadeu – Essa renovação passou por Cuiabá e Mato Grosso nos anos 30 com a criação da revista Pindorama pelos escritores Rubens de Mendonça, Gervásio Leite e João Batista Martins de Melo. Depois foi ampliando com João Antonio Neto, Lobivar de Matos e Manoel de Barros. O poeta Wladimir Dias-Pino e Silva Freire fizeram uma outra revolução nas letras e que foi completada com o trabalho da UFMT. Nossa semana de arte moderna nasceu numa via de mão dupla, ou melhor, de dentro para fora e de fora para dentro, e tem suas próprias dimensões na valorização do passado. O novo vem com o moderno, e hoje estamos entre o antigo e o novo, mergulhados na busca de saber o que fazer com o tesouro que herdamos do passado para podermos continuar com a história. Na vida estamos sempre continuando algo devido ao acúmulo de experiências. Talvez isso seja o que revitalize Cuiabá, e o que a torna relativamente excêntrica, ainda que a cidade não tenha uma ampla consciência desse significado. Cuiabá é uma cidade moderna e velha e por isso mesmo muito moderna, mas planejar Cuiabá exige ousadia, cuidado e conhecimento sobre o papel da cultura na sua formação. Escritores mato-grossenses como Rubens de Mendonça, Gervásio Leite, Lobivar de Matos, Wladimir Dias-Pino, Silva Freire, Ricardo Guilherme Dicke, Manoel de Barros, Tereza Albues criaram sua própria estética literária, e produziram trabalhos incríveis. Quando coordenador da EdUFMT publiquei Ricardo Guilherme Dicke e Tereza Albues, tendo sido Dicke premiado pela União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro com o livro “Cerimônias do Esquecimento”.

 Blog da Condessa- Os artistas modernistas exploraram temáticas ligadas ao universo indígena e ao afro-brasileiro. Mas negros e indígenas participaram da semana e do movimento enquanto artistas?

Fernando Tadeu – Os temas abordados foram muitos, trouxeram embutidos o índio, o negro e o português, que sempre existiram em cada um de nós, mas faltou uma participação mais efetiva do índio, do negro, da mulher, e do homoafetivo. Eu arriscaria dizer que o homem de cor branca prevaleceu, e que ainda hoje o país teria dificuldades de incluir todos esses segmentos numa mesma semana pelo fato de continuar com características herdadas da maneira de pensar dos séculos XIX e XX. Somos uma República-Monárquica, mas espero um dia ver este país agindo como uma verdadeira República. Dividir a morada com outros pessoas não é fácil, exige desapego e desprendimento, daí a importância de morar em casa do estudante, em quartos de casas de outras pessoas, contudo, ainda assim a experiência doméstica não garante que a pessoa aprenderá o sentido da vida em República. É preciso muito mais para entender o que é uma República!

Blog da Condessa – É inegável que a Semana de Arte Moderna virou um marco. Um marco de inovação e criatividade?

Fernando Tadeu – A semana de arte moderna foi um movimento da elite paulista, e quando jovem foi que comecei a me interessar pelo assunto, mais precisamente no terceiro ano do segundo grau. Em Cuiabá e Mato Grosso o tema foi introduzido aos poucos, o moderno parecia assustar a província, mas um dia a modernização se impôs na cidade. Isso aconteceu no final dos anos 30, e o interventor Júlio Muller, que amava a cidade, modernizou-a para que continuasse sendo capital, caso contrário, perderia o posto para Campo Grande, cidade moderna, e que objetivava o comando do Estado.

Quando Mato Grosso foi dividido, em 1977, Campo Grande tornou-se a capital de Mato Grosso do Sul. É realmente uma cidade de traçado moderno, e muito bonita. Por fim, antes de concluir, quero deixar o registro de que as intenções dos artistas de 1922 eram interessantes, comungo com as propostas, contudo, a modernização pretendida não se efetivou de imediato, foram acontecendo durante o século XX, e ainda continuam neste século XXI. Na primeira década do século XXI as “Participações Público-Privadas” em Mato Grosso receberam o apelido de “PPPs caipiras” devido ao modo como foram arregimentadas. Um caso para ser pensado diante da sua indagação referente à criatividade e à inovação pretendida. Por isso das seguintes indagações: somos modernos ou somos caipiras? Porque não temos o Museu de Arte Moderna do Estado de Mato Grosso?

 Blog da Condessa – Se a Semana de 22 não tivesse existido, algum outro evento, em algum outro lugar, teria surgido para mostrar o descontentamento dos jovens artistas com a estética da época, com a renovação artística?

Fernando Tadeu – Tenho dificuldade como grande parte de historiadores acredito que tenha com o se. Na história analisamos o que de fato ocorreu, e não o que poderia ter acontecido em meio a outras variáveis. O se vale apenas nas historinhas inventadas, quando somos crianças e imaginamos mil coisas deliciosas. Nos Estados Unidos, na História Econômica, existe uma corrente que usa o se nas análises, li uma vez um trabalho sobre estrada de ferro, que fez o emprego desse condicional, a pesquisa além de interessante foi bem escrita, mas prefiro o fato real.

A semana de arte de 1922 propôs o novo, fez-se na época o que era possível porque no caminho apareceram dificuldades como disse Drummond na poesia, “No meio do caminho”, da qual transcrevo o trecho, “Tinha uma pedra no meio do caminho. No meio do caminho tinha uma pedra”. Hoje, diria que não temos no meio do caminho apenas uma pedra, mas temos várias pedras no meio do caminho. E agora, Drummond?

Tirar as pedras do caminho é a primeira coisa a fazer pelo fato de que viver sem arte não tem graça. Trabalhei e trabalho com artistas, são deliciosos e esperançosos, enxergam tudo que vocês possam imaginar, são rápidos e certeiros, e sabem identificar quem gosta da arte, e como onças os defendem vivamente. Certa vez ganhei de presente uma crônica linda do Ricardo Guilherme Dicke, relatando tudo de uma viagem, que fizemos ao Rio de Janeiro, e que foi publicada no Jornal Diário de Cuiabá, e um quadro do artista plástico João Sebastião Costa, quando coordenava a EdUFMT, talvez pelo fato da sua arte ter sido capa do catálogo das Editoras Brasileiras na 46ª Feira do Livro de Frankfurt, de 1994. Quando João Sebastião Costa me entregou o quadro disse, “uma onça para uma oncinha, a onça maior é Aline Figueiredo”.

A tela ficou no acervo de arte da UFMT e Aline Figueiredo é crítica de arte, criou o Museu de Arte e de Cultura Popular da UFMT (MACP/UFMT), ao lado do artista plástico premiado Humberto Espíndola. Viva a semana de arte moderna de 1922, que surjam mais onças em defesa da arte e que venham muitas outras semanas de artes neste século!

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