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‘Bereu’ em Cáceres

Bertolt Brecht (1898-1956), dramaturgo e poeta, escreveu e encenou peças que além do viés de entretenimento possuíam uma faceta política, ligada, sobretudo, a luta de classes. Sua maneira de narrar os acontecimentos lançavam luzes sobre a realidade, despertando a criticidade de seus leitores e da plateia que voltava para casa questionando-se sobre o seu papel na sociedade.

BEREU, encenada pelo CENA ONZE sob a direção de Flávio Ferreira e Janaína Borges, faz exatamente isso.

Fruto de um sério trabalho de pesquisa, a peça BEREU é construída com base nos relatos de detentas do presídio feminino Ana Maria do Couto May, lugar onde o Cena Onze atua há catorze anos realizando cursos de teatro, dança e figurino. Portanto, as dez atrizes que atuam na peça dão voz e corpo a histórias reais.

É dessa experiência imersiva que nasce o espetáculo entregando ao público a rotina das apenadas em suas celas com suas dores, seus sonhos e seus temores.

O nome da peça significa carta ou bilhete na gíria do presídio. O BEREU quando encenado passa a ser uma carta também, só que agora entregue e lida abertamente a todos que assistem.

Hoje, Dia de Finados, a convite do Cena Onze, assisti à peça dentro do presídio feminino de Cáceres, juntamente com as mais de sessenta detentas.

Sentados ali, à sombra das instalações e sob um calor de mais de quarenta graus. O silêncio que antecede a apresentação é quebrado pelo barulho das cadeiras se ajeitando enquanto a peça começa. Instalasse um misto de surpresa, êxtase e tensão. Somos vigiados pelas agentes prisionais, todas de preto, e suas armas a tiracolo.

O cenário, uma armação metálica que aprisiona as atrizes, e o figurino não nos deixa esquecer o chão que estamos pisando: a cadeia.

Ao primeiro acorde da trilha musical, esteticamente e sonoricamente incrível, minhas lágrimas misturam-se ao meu suor e escorrem pelo meu rosto por mais de uma hora de peça, que segue de uma roda de conversa em que atrizes e detentas conversam sobre o espetáculo.

O texto consegue oscilar entre o jocoso e o visceral, tensionando sensações. Afinal quem são as personagens ali apresentadas? O que elas têm a dizer? O que dizem seus corpos?

Ao sentar-me na última fila de cadeiras foi possível perceber as discretas reações daquelas mulheres que viam, diante de si, sob o sol cacerense, suas histórias narradas com tanta força e respeito. Havia cumplicidade, um pacto silencioso e pleno de sentido era celebrado à medida que cada personagem manifestava-se.

A arte tem esse poder. Retirar, ainda que por instantes, o torpor da vida. Devolver o sonho, ressignificar sentidos, apresentar novos horizontes. A vitalidade com que BEREU é apresentada surpreende. Enquanto o conteúdo estético cria uma atmosfera de comoção, o conteúdo político gera a mediação entre a arte e a realidade.

Eu esqueci que estava dentro de um presídio, éramos todos plateia.

Essa é a magia do teatro.

*Edson Flávio Santos é Doutor em estudos literários e professor da MT Escola de Teatro.

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